Economistas, empresários e governos buscam formas de pagar (e receber) pela preservação dos recursos do planeta. Por que isso é essencial para nós
O agricultor Hélio de Lima, de 58 anos, é um homem de sorte. Em sua propriedade rural na cidade de Extrema, divisa entre os Estados de Minas Gerais e São Paulo, há dez nascentes. Quando as águas encontram os riachos vizinhos, ajudam a formar o rio da foto que abre esta reportagem. O gado nunca passou sede. Não falta à família água para se banhar nos fins de semana. Além disso, há um ano, Lima passou a lucrar diretamente com suas fontes. Em troca de preservá-las, ganha da prefeitura em torno de R$ 1.300 todo mês.
A explicação é que, depois de correr cerca de
A relação monetária entre Lima e a prefeitura de Extrema tem nome: pagamento por serviços ecológicos. Ele recompensa quem ajuda a sociedade a preservar seus recursos naturais. Não é só a água doce e limpa. É também a polinização dos insetos, sem a qual não existiria agricultura. Ou a regulação do clima, feita pela floresta que estoca carbono. Ou as drogas, cujos princípios ativos vêm da fauna e da flora. O declínio da biodiversidade leva à decadência econômica, afirma Luiz Fernando Merico, diretor da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) no Brasil, um organismo que reúne 1.200 organizações preservacionistas.
Não é nenhuma novidade que a natureza é a base da economia. Sempre foi até porque não há vida fora da natureza. Mas a abundância de recursos era tamanha que eles podiam ser considerados inesgotáveis, e portanto gratuitos. Em alguns casos, essa premissa se revelou ilusória, como na civilização da Ilha de Páscoa, no Pacífico, que ruiu quando a madeira acabou. Há um temor similar para alguns recursos de nossa civilização, como o petróleo, os peixes e até a água potável.
A demanda por recursos naturais é 35% maior que a capacidade do planeta de renová-los
É por isso que a economia tradicional começou a adotar as preocupações dos ambientalistas. A grande questão é estabelecer o valor dos recursos para saber quanto e como usá-los. Não é uma conta fácil. Em primeiro lugar, a natureza tem um valor subjetivo . Em segundo lugar, parte de seu valor é potencial um princípio ativo ainda não descoberto para curar uma doença, por exemplo. É impossível saber que impacto essa exploração teria no futuro.
Mesmo assim, a ciência já tenta atribuir preço aos recursos naturais. Faz isso de dois modos. O primeiro é pelo cálculo do lucro obtido com a preservação (a água limpa, o mercado de orgânicos que floresce da proteção à biodiversidade, os ganhos de eficiência nas empresas ou no reaproveitamento do lixo etc.). O segundo modo é calcular o prejuízo que a destruição dos recursos naturais acarreta o preço da dessalinização da água, os deslizamentos resultantes da derrubada de matas, o custo de alugar abelhas para polinizar a plantação quando as abelhas nativas são destruídas. Essa conta é complicada porque boa parte da depredação vai incidir somente sobre as próximas gerações, que não têm como dar palpite nas políticas atuais (mas em compensação contarão com tecnologias que ainda não foram inventadas).
O grande desafio é encontrar fórmulas para que quem explora os recursos naturais ajude a pagar a conta de sua manutenção, diz o economista americano Robert Costanza, da Universidade de Portland. É algo que alguns economistas visionários pregam há décadas. O professor americano Herman Daly é um dos pais dessa economia ecológica. Colocou o desenvolvimento sustentável em pauta nos anos 80 quando foi economista sênior do Banco Mundial. Hoje, como professor da Universidade de Maryland, diz acreditar que o crescimento da população demanda uma mudança na teoria econômica. Daly questiona o conceito do Produto Interno Bruto (PIB), que inclui apenas as riquezas materiais geradas. Acha que é necessário descontar desses ganhos os gastos com a poluição do ar, os resíduos, a destruição da floresta.
Os economistas brasileiros estão engajados nessa discussão, como mostra o livro O que os economistas pensam sobre sustentabilidade, do jornalista Ricardo Arnt. Hoje estamos internalizando a finitude da Terra, afirma Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento. O problema ambiental sempre existiu, só que era marginal. A restrição não era mandatória. Agora é, diz André Lara Resende, ex-presidente do BNDES e cocriador do Plano Real.
Esse tema se impôs como urgente porque o mundo já começa a sentir os reflexos da exploração inconsciente da natureza. Segundo o relatório A economia dos ecossistemas e da biodiversidade, divulgado neste ano pela ONU, mais de 60% dos serviços naturais do mundo foram degradados nos últimos 50 anos. De acordo com o estudo, a demanda atual por recursos naturais é 35% maior que a capacidade do planeta de renovar esses recursos e, a prosseguir o atual ritmo de crescimento da demanda, em 2030 estaríamos consumindo o dobro do que a Terra é capaz de repor naturalmente. O relatório, do economista indiano Pavan Sukhdev, é parte de uma série de cinco publicações que a ONU lança até a Conferência da Biodiversidade (COP-10), em Nagoya, Japão, em outubro, quando os principais governos do mundo vão tentar traçar metas para a biodiversidade.
Reverter dados tão abrangentes em valores monetários é uma tarefa complexa. Robert Costanza foi o primeiro a atribuir preços à natureza. Em 1997, ele estimou que a biodiversidade do mundo valia US$ 33 trilhões (algo como US$ 45 trilhões, no dinheiro de hoje). Todos nós já estamos pagando por essas perdas, diz. Mas ainda não exatamente
Extrema, a cidade do agricultor Lima, é um caso raro de investimento preventivo. A ideia surgiu em 2001, quando Paulo Pereira, do departamento de meio ambiente do município, se inspirou em um projeto da Agência Nacional das Águas para remunerar os donos de nascentes. O Código Florestal determina manter
A cidade de Nova York vislumbrou oportunidade semelhante há 20 anos. Optou por melhorar a qualidade da água nas nascentes em vez de gastar com tratamento químico. O governo paga aos fazendeiros de Catskill, um município a
Há outras iniciativas projetadas para garantir a manutenção da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas. Uma delas é um sistema que remunera quem ajuda a preservar a floresta, porque o desmatamento gera emissões que contribuem para as mudanças climáticas (e quem paga ganha créditos para cumprir suas metas de poluir menos). O mecanismo, conhecido pela sigla Redd, também pode gerar benefícios para a biodiversidade ao conservar as matas naturais. Mas sua adoção, atrelada ao acordo internacional do clima, está lenta.
Enquanto isso, o Brasil tem, desde 1991, um sistema para premiar as cidades que mantêm suas áreas de florestas protegidas, têm saneamento básico, conservam seus mananciais e solos. É o ICMS ecológico. O dinheiro vem do Estado e o porcentual varia de acordo com a contribuição de cada município ao meio ambiente. Está na lei de 16 Estados. Segundo o último levantamento, de 2007, o município mais beneficiado, de Piraquara, no Paraná, recebeu R$ 8,6 milhões. Apesar disso, ainda é um recurso desconhecido para a maioria dos prefeitos às voltas com grandes áreas para proteger.
O ICMS ecológico não faz mágica. Os moradores de Prudentópolis, uma cidade de 50 mil habitantes no interior do Paraná, sabem bem que um mecanismo mal implantado pode trazer mais discórdia que benefícios. Os agricultores de lá recebem o incentivo desde 1998. São moradores de faxinais, um sistema de vida comunal em que colonos vivem em propriedades coletivas, marcadas pela agricultura de subsistência, com os animais soltos em campos abertos, sem cercas entre as casas. Esses redutos de comunidades tradicionais ficam debaixo de uma floresta de araucária. Em troca de preservá-la, eles recebem o recurso do Estado. A agricultora Lucia Barabach, de 42 anos, nasceu e se criou em um faxinal
A preservação da biodiversidade não vai passar de discurso se as empresas não agirem. Assim como ocorreu com as mudanças climáticas, três anos atrás, os executivos começam a reconhecer a biodiversidade como crucial para o futuro dos negócios. Em uma pesquisa divulgada neste ano, a consultoria McKinsey apontou o tema como a próxima grande questão do mundo dos negócios. O estudo, que ouviu mais de 1.500 executivos de grandes companhias do mundo, conclui que a maioria (59%) vê a conservação da biodiversidade incluindo a variedade de espécies, os ecossistemas e a variabilidade genética mais como oportunidade que como risco. Em outro levantamento da consultoria, feito em 2007, apenas 29% dos entrevistados diziam ver oportunidades no combate ao aquecimento global.
Esse otimismo se reflete em negócios emergentes para a biodiversidade e os serviços ambientais. O mercado mundial de produtos agrícolas certificados, somados aos orgânicos e aos que contribuem para a conservação, poderá chegar a US$ 210 bilhões em 2020. Os governos deverão desembolsar algo em torno de US$ 6 bilhões pelos serviços ecológicos relacionados à água (leia o quadro abaixo).
O governo do Equador captou essa tendência. Em agosto, o país assinou um acordo pioneiro com as Nações Unidas. Quer receber US$ 3,6 bilhões dos países ricos em troca de deixar intactas suas recém-descobertas reservas petrolíferas no Parque Nacional de Yasuní. Trata-se de uma das áreas mais ricas em biodiversidade da Terra cerca de
Pelo lado do cálculo dos prejuízos com a devastação também há avanços. Um relatório ainda inédito da ONU, conduzido pela consultoria inglesa Trucost e publicado pelo jornal britânico The Guardian, estimou os custos dos danos ambientais das 3 mil maiores empresas do mundo: algo em torno de US$ 2,2 trilhões em 2008. Se tivessem de pagar pelo prejuízo ao planeta, as companhias desembolsariam um terço de seu lucro. O valor corresponde a algo entre 6% e 7% do volume de negócios. Mais da metade é referente à emissão de gases causadores do efeito estufa. A outra parte está na poluição do ar e no uso elevado de água nos processos produtivos. Algumas empresas decidiram agir preventivamente. Principalmente quando seu negócio depende diretamente do recurso natural. A AmBev anunciou em maio a intenção de reduzir em 11%, até 2012, o consumo de água na produção de bebidas. Vai investir R$ 5,8 milhões em programas de reaproveitamento e redução do consumo neste ano.
Há setores que já começaram a sentir o peso da exploração predatória do passado. Há quase um ano não produzo sequer uma gota de óleo, diz Carlos Magaldi, de 39 anos, sócio da empresa Magaldi Agroindustrial, no interior do Amazonas. A fábrica, no meio da floresta, produz óleo essencial de pau-rosa matéria-prima de um dos mais cobiçados perfumes do mundo, o Chanel nº
Com o aumento da fiscalização, Magaldi e outros produtores enfrentam mais burocracia para extrair a essência. De olho nisso e em um possível sumiço de matéria-prima , pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) estudam uma maneira de obter o produto sem ter de derrubar as árvores. Testam a retirada do óleo dos galhos e até das folhas da espécie. Já comprovaram que a produtividade é grande, cerca de 30% maior que o processo feito com troncos. Magaldi tem uma plantação com 1.800 exemplares de pau-rosa. Assim que obtiver a licença do órgão responsável para podar suas árvores, vai conseguir produzir perfumes mais ecológicos. Quando se tem plantios, cai a pressão sobre os remanescentes na floresta, diz Paulo de Tarso, pesquisador do Inpa. Soluções criativas como essa ajudam não só a preservar o Chanel nº 5. Elas são cruciais para garantir nossa própria sobrevivência no futuro.
por Aline Ribeiro
Fonte: Revista Época