O BECO

18/10/2011 23:02

 

O que seria apenas um caminho espremido entre uma via e outra, entre tantos outros, o Beco mais conhecido pelos enamorados de Paty do Alferes era o lugar mais que perfeito para acobertar alguns encontros amorosos furtivos e por vezes, vigiados. Isso em uma cidade pacata tradicionalmente movida pela fé religiosa e pelas tradições familiares.

A entrada principal ao lado da avenida central era muito discreta e quase deserta, apesar de ser bem próximo ao centro comercial.  A outra entrada ficava em um local ermo, que esporadicamente era aproveitada para receber as instalações de circos e parques de diversões que passavam pela cidade.  Mas era por ali que as pessoas cortavam caminho para chegar do outro lado mais rápido, ou então ficar no meio do caminho, pois muitos não tinham a intenção de cruzá-lo, seu objetivo estava lá, bem no centro do Beco.

Lugar convidativo, privilegiado pela natureza, tinha nas suas laterais apenas altas paredes sem qualquer abertura e uma extensa vegetação que fora cuidadosa e milimetricamente plantada, que funcionava como uma verdadeira cerca viva que preservava as identidades e mantinha a quase privacidade daqueles casais que marcavam seus encontros amorosos ali.

Era eu um garoto de sete anos, e como poderia saber de tudo isso? Bem considerando as razões que me levaram a escrever este texto, diria que foram as situações pessoais e circunstânciais que me colocaram na rota do Beco. Quando se tem cinco tias que não gostaria de ficar eternamente “titia”, as conversas rolavam pelos cantos da casa, vez por outra, era comum ouvir sussurros, suspiros apaixonados, ansiosa expectativa e planos para uma visita ao Beco.

Quando tamanha emoção extrapolava, falando mais do que podia e suas palavras chegavam a quem não devia; as intenções se complicavam. A sanha era neutralizada com castigos de enclausuramento, ou então por mim; quando eu assumia o papel de “fiscal acompanhante”.   Se uma delas tinha que ir a algum lugar, a minha avó me designava a acompanhá-la e ficar de olho aberto para que nenhum gavião se aproximasse.

Coitadas das minhas tias, eu era carne de pescoço, marcava junto e não dava trégua. Em certas ocasiões, esta vigia se fazia na varanda de casa, era só o candidato chegar para uma visita, a minha avó impunha sua norma, e de forma imperativa falava: “menino, vá sentar lá na varanda e fique de olho naqueles dois, não saia de lá enquanto ele não for embora”!

Linha dura? Nem tanto, quando se quer fazer algo, as normas podem ser quebradas, acho que naquela época já deveria ter ouvido um ditado que diz; “todo homem tem seu preço”, e como tal eu também tinha meu preço. Negociava antes com as tias, sempre coisas da gula, o que poderia ser mais interessante para uma criança do que doces, balas, pirulitos, chocolates e pastéis?!  Já digo o porquê dessa escolha.

Dentre as tias, tinha uma que era apaixonada pelo cozinheiro do Bar do Celino, o J. Broa, homem simples, de bom coração, muito tímido e muito querido pelos clientes. Adorava jogar sinuca em suas horas de folga, tivemos bons momentos à volta da mesa assistindo seus jogos, vez por outra, ele dava uma colher de chá e chamava para nos ensinar sua arte de jogar. Ali, ficávamos horas a fio olhando vários adeptos da sinuca se desafiar sobre a mesa do pano verde.

Enquanto isso, algo nos chamava atenção, diante das mesas um balcão e em cima uma redoma de vidro expondo pastéis que exalavam seus perfumes culinários, mal dava tempo para esfriarem, eram consumidos prontamente. Motivo este que por diversas vezes fazia o J. Broa se ausentar do salão em direção a cozinha para refazer outra leva de apetitosos pastéis, mesmo estando ele em suas horas de lazer, pois ninguém o substituía em produzir pastéis com igual sabor.

Coitado do J. Broa, mal sabia que aquele saboroso dote culinário, viria a ser moeda de troca, obrigando-o a levar consigo para negociar seus encontros amorosos, pois era assim que eu como o tal “fiscal acompanhante” negociava, para que ele tivesse paz no seu encontro com a minha tia no Beco.

Um desses dias em que eu estava de plantão na fiscalização no Beco, o J. Broa não levou a nossa moeda de troca, fiquei muito bravo e parti em direção de casa, lá comentei com minha avó o ocorrido. Não deu outra, foi chamado a termo passando a assumir suas responsabilidades. De certa forma acabei sendo o verdadeiro cupido dessa união, por uma ação de gula da minha parte os coloquei frente a frente no altar, concluindo com um belo casamento. 

Tio J. Broa, hoje o senhor se encontra em outra dimensão, mas vejo nestas poucas letras a oportunidade de lhe pedir perdão pela inocente extorsão. Mas como tudo na vida tem o lado bom, o senhor acabou casando com a tia, trouxe ao mundo uma bela prole, formando uma linda família. Pena que a vida nos separou rapidamente e muito cedo; mal tivemos tempo para sentarmos e conversarmos sobre nossos velhos tempos. Nem mesmo tive oportunidade de te pedir especial desculpas pelo dia que você não levou seus pastéis lá no Beco. Mas como Deus escreve certo por linhas erradas, estou aqui contando essa pequena história e sentindo saudades de tudo, inclusive do Beco, de vocês tio e tia, e porque não dos pastéis.

Lucélio Costa Gonçalves – Carioca de nascimento, Cidadão Cuiabano, Bacharel em Direito, Pós Graduando em Direito Agro-ambiental, Professor de Judô, Compositor, Ambientalista, Membro da ONG Garra.