O LOBISOMEM DE PATY DO ALFERES

02/10/2011 23:03

 

Início dos anos 60, Estado do Rio de Janeiro, Paty do Alferes, rua Dr. Peralta, num sítio cheio de árvores frutíferas, entre a rua, o rio e a estrada de ferro, numa casa modesta feita com o suor de todos da família do meu avô “Tem-Tem” (como era conhecido), eu e mais cinco irmãos, passamos a morar depois que os nossos pais, foram para o oriente superior.  Naquela simples mais aconchegante casa, sem que fosse planejado, tão pouco esperado, fomos recepcionados por nossos avôs, cinco tias e dois tios.  Foi um recomeço para todos, nós por estar fora do alcance e cuidados dos nossos pais, e nossos novos familiares que não estavam esperando o aumento de pessoas na família, e que tiveram atrapalhadas as suas vidas por nossa intromissão. Pois jamais pensariam que após terem alcançado a maioridade, teriam que cuidar de crianças, apesar de sermos seus sobrinhos. Enfim, são as voltas que o mundo dá, seguindo o que Deus indica.

Nossas vidas prosseguiam, ora com alegrias, ora com tristezas, tudo dependia de como todos acordavam, se o sol brilhava, se as chuvas caiam, se a lua era clara ou se a noite era tensa. O cotidiano era marca registrada, acordar, comer, brincar, obedecer, fazer tarefas. Aí de nós desobedecermos às estruturas patriarcais imposta, rolava castigo e até uma boa surra, às vezes de chinelo, às vezes, uns bons tapas e até mesmo umas chicotadas nas pernas, resolviam-se tudo.  Mas nada comparado a torturas, era como se comportavam as famílias na época, ao educar ou corrigir as crianças.

Passaram-se os anos, crescermos um pouco, com isso as percepções do Ser, começa a ter uma noção de que a vida é feita de histórias e verdades, sonhos e fantasias, ter e não poder, poder e não ter, fazer ou não fazer, dar ou negar, enfim, cedemos para vencer ou vencemos para ceder.

Tínhamos em nossa rotina diária as divisões das tarefas dos afazeres domésticos, duas delas eram consideradas mais diversão do que obrigação. A primeira era levantar bem cedo pegar lenha e acender o fogão de lenha. Especialmente quando estava frio, me aquecia e ainda poderia tomar meu café primeiro, caso estivesse aquele solzinho amarelo e fraco, que mal dava para aquecer. Entre um gole café e outro nós divertíamos soltando o ar dos pulmões, vendo aquela fumacinha sair pela boca, muito comum nas regiões frias.

A outra tarefa, a preferida, era varrer o terreiro com vassoura de bambu, era como se estivesse pintando um quadro de Van Gogh. Varria o quintal em zigue-zague, marcando o chão vermelho em pinceladas fortes como um campo de trigo. Era muito lindo ao ver de longe aqueles desenhos, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Como era bem grande aquela minha tela, desde a porteira até junto à parede da casa. Durante este tempo, esbaldava comendo as frutas que tinha em abundância em volta do quintal e ficava ouvindo os pássaros cantando, em especial, os sabiás, paixão de uma das minhas tias, que criava em gaiolas desde que eram filhotinhos. Muitos dos quais vendia, ou soltava depois de adultos.

Assim, fomos crescendo dentro daquela quase harmonia, pois vez por outra, era quebrada por uma das nossas traquinagens ou desobediências, muito normal entre seis crianças em meio a nove adultos, visto que meu avô ficava maior parte do tempo em seu serviço em outra cidade. Dia após dia, inverno, após inverno, tínhamos que ir tocando em frente, pacatamente sem quebrar as rotinas, que só acontecia quando alguém vinha nos visitar ou para comprar bambus, que adornava todo entorno do sítio e provocava cobiça de muita gente, uns pela beleza de seus troncos e pelos sons de suas folhas que soavam aos ventos, ou ainda, quando um parente distante chegava para uma visita rápida. Neste dia tudo era melhor, tínhamos mais liberdade de ação, os adultos nos diziam: “vão brincar crianças”! Palavra mágica, que era sinônimo de festa. Dirigíamos diretamente ao rio, e banhávamos o dia inteiro, subindo e descendo de árvores, comia os melhores frutos, era como se estivéssemos no paraíso, sem nossos tios por perto para chamar nossa atenção.

Ao chegar o entardecer, a família se reunia na sala ao redor do rádio para ouvirmos a Ave-Maria, isso as 18h00min. Após isso, os mais velhos se dirigiam para seus aposentos, enquanto os mais novos continuavam junto ao rádio. Era hora de visualizar em nossas mentes com era possível ser um herói do sertão.  Era nesta hora que a criatividade desenvolvia, ao imaginar aquelas ações do Jerônimo o Herói do Sertão. Olhava para o dial do rádio como se ali tivesse uma tela de TV de hoje, pois bem sei que muitas vezes pude imaginar como se dava aquela ação da narrativa. Montava a cena em minha mente, e até mesmo, discutíamos uns com os outros de como o nosso herói socou seu algoz. Tinha também a radionovela O Anjo, esse mais suburbano, com histórias mais contemporâneas. E como esquecer o maior fenômeno de audiência em radionovelas em toda a América Latina, O Direito de Nascer, a preferida das minhas tias.  Enfim, era o rádio nossa maior distração durante este período da minha infância.

Este tipo de reunião de família no período da noite era ou ainda é muito comum em cidades pacatas como era Paty do Alferes, mas havia outras diversões, outros passatempos, estas, muitas vezes tenebrosas, que tinha a única intenção, amedrontarem-nos e com isso, evitar qualquer intenção de fugir durante as noites. Era momento das histórias macabras, fantasmas, mula sem cabeça, caveiras, moleque Saci, lobisomem e outras mais. Perdi muitas noites de sono por medo mesmo, qualquer ruído, barulho ou sombras nas paredes, era motivo de perder o sono e rezar para que amanhecesse logo. A cada encontro uma história diferente, despertando curiosidade, mesmo com medo ficávamos a espreita para saber mais e mais, tudo isso sem perder o medo, pois enquanto tínhamos muitas histórias, às noites ficavam menores, logo, quanto mais, menos sofrimentos para dormir. 

Até que um dia, bate a nossa porta um quase vizinho de bairro, morador da Mantiquira, que não morava tão perto assim, era na mesma rua, mais pelo menos dois quilômetros da nossa casa. Criador de porcos, conhecido como o homem que virava lobisomem, isso por suas semelhanças claras com o tal bicho, e confirmado pelo próprio, nas conversas nas biroscas da região. Por tanto, conhecido e reconhecido como o lobisomem de Paty.

A rua Dr. Peralta nunca teve iluminação pública, eram as luzes de algumas casas ao longe, que servia de parâmetro para deslocarmos durante a noite, e isso acontecia raramente, ou por doenças de algum vizinho, nascimento de um filho, ou ainda, em ocasiões de datas festivas como: natal, carnaval, festa da cidade ou da igreja. O primeiro sopro da modernidade que pude sentir naquela época, foi exatamente a chegada dos postes de iluminação pública, nossa simples rua iria ter iluminação! Fim da escuridão! Fim dos medos! Poder sair à noite, visitar mais gente, ou seja, sair da nossa caverna, encontrar a luz. Bem, já naquela época as obras públicas prometidas jamais cumpriram os prazos de entrega dos serviços, fatos parecidos com os das políticas em vigor nos dias atuais. Esperamos por esta iluminação por muito tempo, era estranho que vários homens trabalhavam durante o dia esticando fios daqui prá lá, de lá prá cá, aperta aqui e solta lá e nada da tão esperada iluminação.

Pois bem, retomando, o nosso vizinho que chegara para nós visitar logo no início da noite, aquele mesmo que dizia virar lobisomem. Muito espantado, com unhas grandes e sujas, roupas maltrapilhas, tinha ele certa tristeza em sua velha e carcomida face, era como se estivéssemos de cara com o bicho ruim. Pois bem, era um vizinho que com seus motivos resolveu nos fazer aquela especial visita sem prévio aviso. Mas o que seria que ele tinha de tanta importância nesta visita? O que teria ele tão aflito para nos contar? Bem, tínhamos que ouvir o senhor lobisomem. 

Como a noite estava muito fria, resolvemos nos reunir na cozinha que era ampla e quente por conta do fogão a lenha, logo, mais aconchegante para ouvirmos uma boa história. O visitante postou-se de cócoras junto à parede e com um ar de espanto, com a voz rouca disse: “eu quero dizer que vocês precisam tomar muito cuidado ao saírem à noite, tem um lobisomem andando pelas redondezas, assustando os cachorros, e ele é muito perigoso e feio. Têm dentes grandes e é todo peludo, já por várias vezes tenho acordado durante as noites para afastá-lo dos meus cachorros”. Deu uma pausa na fala, se esfregou todo, passando as mãos no rosto, desgrenhando mais ainda seus cabelos, murmurava algo em voz baixa, incompressível. Ficamos todos mais descabelados que ele.

O medo que já era grande somente com sua visita ficou muito maior, mas teríamos que continuar a ouvi-lo.  Foi quando num ato de grande susto, levantou-se e disse em voz forte “vocês não saiam por estes dias durante as noites, vou ficar de vigia nesta rua, tentando pegar esse bicho e acabar com a vida dele”.

Foram uns trinta minutos de pleno silêncio, ninguém ali dava um pio. Trinta minutos de apreensão, de intermináveis arrepios que mais parecia horas.  Então, ele caminhou em direção a porta e repentinamente culminando com suas últimas palavras, “tomara que esses homens da Light (companhia elétrica), terminem logo estes serviços de iluminação. Assim, este lobisomem some daqui, vocês sabem que ELE tem medo de luz? Só que tá demorando né? pra ficar pronto”. Concordamos em voz fraca e uníssona, “éhh mesmo!”. Deu-nos boa noite e disse que precisava ir embora, assim o fez, sumindo na escuridão.

De fato, a tal iluminação era prometida e reprometida e nada, o que será que falta para inaugurar esta obra? Passou uns dias e de repente aparece uns homens uniformizados diante de nossa casa. Aquela novidade era uma distração para nós, vimos quando eles esticavam grossos fios dourados entre os postes, agora era só uma questão de horas e teríamos a tão esperada iluminação.

Anoiteceu, a ansiedade crescia, olhávamos pelas frestas das janelas e nada. Ouvimos a Ave-Maria, Jerônimo, O Anjo, Direito de Nascer e nada. Muito desapontados, fomos dormir com aqueles medos agora muito mais exaltados, seriam sim umas das maiores noites de horror.

A noite escura e longa predominava em nossas mentes, mas, a ansiedade foi cansando, o medo adormecendo, quando de repente uns estampidos são ouvidos, gritos, lamentos e uma ordem: “levantes as mãos! Você está preso”! Neste dia, meu avô levantou-se rapidamente chamando todos para a cozinha, “venham fiquem aqui é mais seguro”, quando lá de fora alguém chamou: “Seu Tem-Tem, pode vir até aqui no seu quintal, é a polícia!” Meu avô meio que amedrontado, abriu a porta devagarzinho com muito cuidado e pode ver dois policiais segurando um vulto estranho, que roubava os fios de cobre dos postes que serviam para a iluminação pública, mal dava para se reconhecer. 

Coitado do seu “Osmá!” deu pena de vê-lo assim, com seus dentes grandes, corpo peludo, feio e preso pela polícia. Não rosnou, nem mordeu e muito menos atacou, apenas seguiu para a delegacia. Foi o primeiro caso de roubo de fios de cobre que tive conhecimento, e com direto a efeitos especiais do LOBISOMEM.

Lucélio Costa Gonçalves – Carioca de nascimento, Cidadão Cuiabano, Bacharel em Direito, Pós Graduando em Direito Agro-ambiental, Professor de Judô, Compositor, Ambientalista, Membro da ONG Garra e da Executiva do PV-MT.