SEGURANÇA ALIMENTAR, UM DIREITO FUNDAMENTAL

04/10/2010 21:42

A professora de direito agrário e ambiental da UNESP (Universidade Estadual Paulista), Elisabete Maniglia, define que segurança alimentar é “o direito do cidadão de se alimentar ao menos três vezes por dia e com alimentos de qualidade, dentro de um patamar financeiro a seu alcance”. Em entrevista ao Observatório Eco, avalia a importância da emenda constitucional 64, que incluiu a alimentação no rol dos direitos fundamentais. Porém, alerta que o alcance efetivo da segurança alimentar seja ainda algo distante, que depende de políticas públicas nesse sentido e de mudanças na mentalidade de setores do agronegócio obcecados pelo lucro empresarial “perverso”.

Para a especialista, a produção agrícola focada em “alimentos contaminados por agrotóxicos, defensivos agrícolas são decorrentes de um processo histórico que deve mudar”. “Acreditar numa mudança repentina é ilusão. A mudança só ocorre por pressão, reivindicação e luta”, pondera. 

Elisabete Maniglia é formada em jornalismo pela USP (Universidade de São Paulo) e em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é professora na UNESP, em Franca. Tem experiência em direito agrário e ambiental rural, principalmente em temas como, reforma agrária, direito agrário, trabalho rural, direito empresarial rural e direitos humanos.

Recentemente publicou a obra, “As interfaces do direito agrário e dos direitos humanos e a segurança alimentar”, pela Editora da UNESP, em que defende a segurança alimentar como direito fundamental do ser humano e a necessidade de pensarmos na função social da propriedade e no exercício da atividade agrária sustentável como pilar para a diminuição da fome e da miséria.

Embora a professora reconheça que o Brasil avançou na esfera tecnológica no âmbito rural, em termos ideológicos “parou no sec. XIX”. Com relação à exploração da terra apoiada apenas no cultivo das extensas monoculturas “o futuro poderá ser temeroso principalmente quanto aos danos ambientais. A desertificação já é uma realidade, a diminuição das águas outra, as alterações climáticas que tanto afetam a agricultura estão presentes. Isto é uma pequena amostragem do que poderá vir em maior escala”, alerta. Veja a entrevista que Elisabete Maniglia concedeu ao Observatório Eco com exclusividade. 

Observatório Eco: O filósofo do século XVII, John Locke, enxergava na terra não cultivada um “desperdício”, algo totalmente sem valor. Esse tipo de pensamento ainda sobrevive e é defendido por muitos? Por quê?

Elisabete Maniglia:  A terra não cultivada é um desperdício, porque este bem terra difere dos demais bens jurídicos. A terra gera alimento, que gera vida e dignidade humana, portanto, ser proprietário de terra acarreta uma responsabilidade social. O principio da função social é inerente a propriedade e esta presente na Constituição Federal no artigo 5º como direito e garantia fundamental e descrito no artigo 186 do mesmo diploma, não por acaso, mas para ser seguido.  

Observatório Eco: O que significa segurança alimentar? E quais os caminhos para que essa segurança exista no Brasil?

Elisabete Maniglia: Segurança alimentar é o direito do cidadão de se alimentar ao menos três vezes por dia e com alimentos de qualidade, dentro de um patamar financeiro a seu alcance.

Para que exista segurança alimentar no Brasil é necessário políticas públicas para tal fim incentivando a agricultura familiar dispondo de maiores recursos para a produção de alimentos, favorecendo a merenda escolar, promovendo melhor acesso e condições para que as mulheres tenham conhecimento de uma culinária farta e diversificada por meio de cursos gratuitos.

Apoio de entidades públicas, ONGs e grupos que trabalhem com excluídos, trabalho multidisciplinar de pesquisa e extensão universitária junto a grupos de reprodução social. O programa Bolsa Família tem seu papel também na segurança alimentar de uma forma paliativa. Outros programas devem ser pensados neste sentido inclusive por movimentos sociais

Observatório Eco: Qual a relação entre segurança alimentar e a produção de alimentos com agrotóxicos, gorduras trans e os transgênicos?   A senhora avalia que no futuro o agronegócio abrirá mão deste tipo de produção?

Elisabete Maniglia: Os alimentos contaminados por agrotóxicos, defensivos agrícolas são decorrentes de um processo histórico que deve mudar. Acreditar numa mudança repentina é ilusão. A mudança só ocorre por pressão reivindicação e luta.

Este é processo contínuo de conscientização da sociedade feito por pessoas que possuam interesse no social e na qualidade de vida. Pode ser um trabalho de formiga a principio, mas que deve crescer até por uma questão de sobrevivência e cansaço da população em aceitar ser tão subjugada pelo agronegócio. Entenda-se aqui agronegócio como algo perverso, onde só o lucro interessa e as medidas são individuais, buscando o bem estar somente da empresa rural.

A mudança de mentalidade é fundamental. Algumas medidas como o boicote a alimentos transgênicos, com agrotóxicos, são atitudes que a população deve ter. Mas aí também se não houver incentivos públicos fica difícil porque o alimento orgânico é caro e complexo de ser fiscalizado. O agronegócio se for pressionado vai tender a mudar. Resta saber se o governo tem interesse neste papel, a favor da população e da segurança alimentar

Observatório Eco: Por outro lado, existe a produção do produto orgânico que se limita a ser vendida para a elite e ser exportada para Europa, de que adianta o Brasil produzir produtos de qualidade apenas para exportação e atender ao mercado elitista local? 

Elisabete Maniglia: A produção de orgânicos começa tomar vulto e a consciência de parte da população. No interior tem se mostrado um pouco maior, mas este avanço é tímido ainda.

Produtos orgânicos como o açúcar, café e suco de laranja ainda são produzidos para a venda no exterior devido seu alto custo. Pode até o agronegócio acelerar sua produção, começar sua venda interna se tiver incentivos, tipo tributário, agregação de valor e assim iniciar uma venda para a população local.

Tudo dependerá da organização de uma política agrícola que divulgue e propicie uma produção satisfatória também em preços para que a comunidade brasileira possa comprar.

Observatório Eco: Na Câmara Federal as discussões sobre produção de alimentos parece sempre perder as batalhas legislativas para a produção da monocultura. Qual o impacto dessas decisões no futuro?

Elisabete Maniglia: A vitória da elite rural nos processo legislativos a favor da monocultura é um processo histórico cultural, firmado no principio de que a terra é sinônimo de poder, e que o trinômio latifúndio, monocultura e economia de exportação, quando não trabalho escravo é o fundamento para a manutenção da riqueza dos grandes donos de terra.

Esta mentalidade revela que o Brasil avançou tecnologicamente, mas em procedimentos ideológicos parou no sec. XIX. O futuro poderá ser temeroso principalmente quanto aos danos ambientais. A desertificação já é uma realidade a diminuição das águas outra, as alterações climáticas que tanto afetam a agricultura estão presentes. Isto é uma pequena amostragem do que poderá vir em maior escala.

Observatório Eco: Qual a importância e impacto da emenda constitucional 64 que alterou o artigo 6º da Constituição Federal? Qual a melhor forma de regulamentar esse direito para que se torne algo real efetivamente? 

Elisabete Maniglia: A emenda 64 foi o reconhecimento da segurança alimentar como um direito que pode ser postulado. O resultado é que poderá ser reivindicado o direito a alimentação por meio de ações, assim como hoje já temos ações para solicitação de remédios a fim de garantir o direito à saúde, poderá ser manifesto este direito por ação individual, coletiva e ação civil publica. O Ministério Público terá fundamental importância neste processo.

Observatório Eco: De que forma conciliar no Brasil o direito agrário com a preservação do meio ambiente?

Elisabete Maniglia: O direito agrário é fundamental para o direito ambiental principalmente, no que se tange as questões de ambiente natural.

O problema no Brasil é a disposição fundiária, é saber quem é dono, quem tem posse, para dizer quem tem responsabilidade pela manutenção ou pior destruição ambiental. Grande parte da terra do Brasil não tem identificação, o sujeito se acha dono para usar e destruir, na hora de restaurar e pagar pela destruição não tem vinculo com a terra.

O direito agrário tem papel fundamental em diversos setores de controle de produção e segurança alimentar, pena que não seja tão estudado como deveria, ou às vezes estudado como ramo do civil numa visão individualista. A atividade agrária deve ser vista na ideologia da função social e no paradigma da sustentabilidade em todos os seus setores.

Observatório Eco: Qual a sua avaliação da reforma do Código Florestal defendida pelo deputado federal Aldo Rebelo?

Elisabete Maniglia: O Código Florestal proposto é um grande retrocesso ambiental e uma bela adequação aos interesses dos grandes proprietários rurais que se beneficiarão. Mais uma vez se individualiza os lucros e socializam-se as perdas ambientais. Uma lástima.         

Roseli Ribeiro

Fonte: Observatório Eco